Lilium

O SALÃO DE FESTAS ERA TÃO AMPLO QUE PODERIA ABRIGAR
TODO O POVOADO,

pensava consigo mesmo o jovem moço solitário, que se encontrava num canto alheio ao resto dos convidados. Hora ou outra, os garçons passavam oferecendo quitutes e bebidas tão dispendiosas que o pobre Léo não sabia
apreciar o gosto, devido a sua carência de classe e opulência. Contudo, pouco lhe importava esses luxos, o único motivo dele estar ali era aquela juvenil figura feminina que caminhava entre os comensais, com um sorriso vigoroso, dando-lhes afetuosas saudações.

A senhora Beatriz, mãezinha de Léo, fora por longos anos a ama da casa dos
Oliveira. Ela trazia consigo o filho, que brincava com Lilian, no jardim da casa elegante. Os dois cresceram, cada qual vivendo em uma realidade distinta: Leonardo trabalhava de jardineiro e ajudava a sustentar a casa; Lilian aprendia a costurar, cozinhar, cantar e falar outros idiomas para, em breve, casar-se com um rapaz nobre de classe alta.

Leonardo não se envergonhava de sua origem, mas mesmo que usasse sua melhor vestimenta de gala, estar na presença de outros varões — que cingiam ternos importados e extravagantes — não o fazia se sentir melhor. Era visível seus olhares nele, mirando-o de cima a baixo, mas tudo era suportável, porque ela estava ali.
Lilly (como ele a apelidara gentilmente) trajava um lindo vestido que ia até os
pés, o tecido azul bebê aparentava ser tão macio quanto sua pele, o cabelo escuro estava preso em um penteado que deixava seus ombros desnudos, o perfume que ela usava invadia todo o espaço, tão bem cheiroso que enfeitiçava a todos em sua volta. A junção da vestimenta com o modo gracioso que a bela moça caminhava entre os presentes lhe dava um ar superior, porém angelical. Léo não saberia explicar, mas Lilian, assim como as flores, era sedutora e delicada. Seu próprio nome remetia à uma flor. Talvez fosse por
isso que ele era tão apaixonado pelas flores, singularmente os lírios (do latim lilium).
Leonardo procurou expulsar tais pensamentos, não poderia nutri-los. Nunca
poderia tê-la para si. Era um pobre coitado. Enquanto estava cabisbaixo, discutindo com seu próprio consciente, Lilian aproximou-se.

-Olá, Léo, acredita que passei os últimos dez minutos tentando chegar até aqui? Os convidados de papai não permitiam, todos preocupados em me bajular e falar o quanto eu estou uma “mulher encantadora”. — Ela sentou-se no assento ao lado. — Irei descansar um pouco aqui, espero que não se importe.
- Olá, eles não mentiram. Você está deslumbrante, Lilly. — O rapaz comentou trêmulo. -
- Por que tanta cortesia? — Ela indagou sorrindo. -
- Bom… é o certo para a ocasião, né? — Leonardo procurou relaxar, afinal eles eram amigos a muito tempo. — Qual o motivo desta espetacular reunião? Estou sentindo-me deslocado aqui. — Ele sorriu desajeitado.
Lilian mexeu-se na cadeira, aparentemente desconfortável, ela demorou alguns segundos para responder.Papai disse que encontrou um bom noivo, sabe… com bons dotes… boa família, quero
dizer. Disse que ele estaria aqui hoje. — Ela olhou de súbito para Léo. — Eu não queria,mas…
- Isso é incrível, Lilian. Seu pai está certo. — O rapaz forçou outro sorriso, entretanto sentiu uma parte de si cair num abismo, seu peito pesou com aquelas palavras. — O que está fazendo sentada perto deste miserável que vos fala? Vá atrás do seu futuro noivo. — Ele esforçou-se para conversar com bom humor. -
- Eu não…
- Ah, aqui está ela. Lilian, minha filha, quero te apresentar uma pessoa. — Sr. Dirceu Oliveira interrompeu.

Lilian não teve tempo de responder a Leonardo, o moço fez um sinal de
incentivo para a moça, que tinha um olhar melancólico no rosto, o pai a conduzia para um grupo de pessoas: um rapaz mais ou menos da idade de Léo e um casal mais velho ao seu lado, provavelmente os pais, todos com muito boa aparência. Ao ver a cena, Leonardo engoliu seco e levantou da mesa sorrateiramente, procurando pela porta que dava acesso ao jardim da casa, não conseguia ficar mais um segundo ali naquele lugar.
O ar fresco da noite encheu seus pulmões e o revigorou um bocado, as flores do jardim estavam impecavelmente bem cuidadas, em especial o lírio azulado, a luz da lua as faziam brilhar. Léo sentia-se péssimo, um tolo, como poderia, de alguma forma, iludir-se de que Lilly e ele poderiam ter um futuro juntos? Ele passou a mão na têmpora, que latejava. Nunca — ele repetia para si mesmo — nunca deveria ter regado àqueles
sentimentos por Lilian. Agora tudo estava acabado e, seu coração, despedaçado. Ele escorou-se na parede e foi deslizando devagar até o chão, coberto por gramas. De repente o jardim não lhe parecia tão formoso quanto antes. Ele deixara para demonstrar o que sentia tarde demais, agora não tinha mais volta, Lilian já estava prometida a outra pessoa — muito melhor que ele. Esse pensamento o arruinou, sentia-se reduzido a nada: era pobre de bens materiais e afortunado de amor. Do que isso lhe adiantava? Nada.
Leonardo ficou estático e preso nas próprias lamentações durante um longo
tempo, até que a porta fez um rangido e outra pessoa passou por ela.

- Então aqui está você. — Disse aquela afável voz.
Esforçando para se recompor, Leonardo arrumou a postura e olhou para cima: a luz do luar pareceu envolver Lilian em uma película invisível, como se ela fosse o anjo mais bonito e precioso do céu que agora habitava a Terra.
- Você está bem? Parece péssimo. — Seu olhar era de preocupação, ela também se ajoelhou. -
- Escute… — Léo apertou os olhos, era como se as palavras que queria proferir lhe cortassem a garganta. — Eu… eu preciso lhe contar algo.
- Diga, Léo. — Ela o encarou. -

Aquele olhar penetrou seu coração ferido, os olhos castanhos escuros pareciam
analisar o mais fundo de sua alma. Quando Machado de Assis escrevera “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, era à Lilian que ele estava se referindo.

- Eu estou apaixonado por você, Lilian. — Ele não segurou as palavras. — Sinto isso desde que tínhamos doze anos, eu não queria, sei que é errado, você merece um noivo a sua altura, mas não pude deixar de sentir… eu… não pude. — Ele se levantou e ela demorou alguns segundos para repetir a ação. — Minhas costumeiras visitas à você só fizeram com que esse sentimento durasse, sempre fui seu amigo e nunca me incomodei com isso, sua amizade me bastava, Lilly, meu carinho sempre foi verdadeiro, todavia agora… eu olho para você e tudo o que vejo é a mulher que amo, a preciosa Lilian que todos do
povoado admiram, você é digna de tal, eu também sou um desses adoradores, no entanto o mais miserável deles. Sabe por que eu sou um pobre jardineiro, apaixonado pelas flores? — Leonardo percebeu que sua voz oscilava, ele caminhou em direção aos lírios do jardim e colheu com cuidado um da cor azul. O vestido da garota era semelhante à cor do lírio: a moça era a personificação daquela apolínea e mimosa flor. — Porque a primeira flor que me apaixonei foi você. Lilium. — Ele mostrou a flor para Lilly, ele reparou que ela o olhava com os olhos inundados. A respiração dele estava descontrolada e seu coração pulava. O que será que ela estava pensando?

Lilian estava estática eu seu lugar, o jardim caiu em um estrambólico silêncio,
ela aparentava segurar algum impulso, até que se deu por vencida. A moça puxou o lírio das mãos de Léo e se aproximou dele subitamente, suas mãos pousaram em seu ombro, segurando-o com firmeza, ela o encarou uma última vez e seus lábios se uniram calorosamente.

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